
O Brasil é um país miseravelmente sem memória. Mas isso, todos nós já estamos cansados de saber. Todo grande artista ou intelectual já deve ter dito isso algumas vezes por aí, mas não tenho medo de errar ao afirmar que, entre todas as classes artísticas nacionais, o desenhista é o que carrega a maior e mais pesada cruz quando se trata de reconhecimento.
É como se esse profissional fosse condenado ao anonimato e, por mais que seu trabalho faça sucesso, seja ele um grande caricaturista ou ilustrador, dificilmente um desenhista, mesmo no auge, é reconhecido nas ruas, e quando está aposentado é definitivamente esquecido. É claro que todos reconhecem o
Ziraldo. Não tem Bienal do Livro que resista às intermináveis filas formadas por crianças e marmanjos em busca de um autógrafo do criador do Menino Maluquinho. Certa vez, o Ancelmo Góes disse que, se você quiser encontrar o
Ziraldo numa dessas bienais, basta olhar do alto e procurar o estande com a maior fila. No final dela, estará lá, autografando seus livros, o cartunista mineiro de cabelos grisalhos. Mas o
Ziraldo é uma raríssima exceção à regra. E isso nada tem a ver com talento.
Ziraldo é como Pelé, um mistério a ser estudado pela ciência. De um modo geral, os desenhistas praticamente vivem no anonimato.
Comecei a organizar meus arquivos quando passei a estudar a história do desenho brasileiro entrevistando alguns dos nossos maiores mestres. Um dos primeiros artistas a me atender foi
Aylton Thomaz, em julho de 1991. Depois, tive encontros com
Nássara,
Mendez,
Quirino Campofiorito (que me atendeu na antiga redação do
Jornal de Letras, em Copacabana),
Augusto Rodrigues (que me apresentou suas pinturas no seu famoso estúdio no Largo do Boticário),
José Geraldo,
Carlos Chagas, entre outros. Alguns desses encontros geraram contatos posteriores e fortaleceram novas amizades, como no caso de
Mendez e
Aylton Thomaz.
Thomaz mantinha um estúdio montado num apartamento na Rua Joaquim Silva, na Lapa, Rio de Janeiro, imóvel que o artista comprou graças ao seu trabalho de escritor e educador, que gerou alguns livros pela Ediouro. Na época, gravei um depoimento sobre sua trajetória e fiz uma série de fotografias do artista em frente à sua prancheta. Nesse dia, ele nos contou que começou sua carreira aos 17 anos, quando trabalhou com Adolfo Aizen na Editora Brasil-América Ebal, pela qual arte-finalizava histórias em quadrinhos estrangeiras. Mais tarde, na mesma editora, passou a ilustrar clássicos de José de Alencar, entre outros autores consagrados. Trabalhou também com diversas agências de publicidade, até que passou a se dedicar à pintura. Voltei ao seu estúdio várias vezes e, quando realizei minha primeira exposição (no caso, uma exibição de caricaturas que retratavam Santos Dumont, em novembro de 1993, e que misturava desenhos de alguns dos meus alunos do Senac de Madureira com profissionais da qualidade de
Guidacci,
Mendez e
Fortunato de Oliveira), enviei para ele um convite para a inauguração. Como
Aylton Thomaz tinha para aquela data um compromisso já agendado, ele me telefonou para justificar sua ausência, sem deixar de me dar um puxão de orelhas: “Pôxa, Zé, como é que você organiza uma exposição e não me convida para participar? Da próxima vez, não esqueça do seu novo amigo!” Até hoje não me perdôo por ter dado essa bobeira. De fato, a exposição ganharia em qualidade com sua participação. Mas tive como me redimir um ano após, quando organizei outra exposição de caricaturas, desta vez num espaço ainda melhor, o Museu Nacional de Belas Artes, quando montamos a mostra “Imenso Cordão”, em homenagem ao cinquentenário do compositor Chico Buarque, em junho de 1994.
Aylton Thomaz foi um dos primeiros artistas que incluí na lista dessa mostra coletiva. Assim que fechei todos os detalhes com o pessoal do MNBA, fui até seu estúdio para planejar a execução de seu trabalho. Durante os dias em que planejamos sua participação,
Thomaz demonstrava bastante alegria e uma certa dose de nervosismo. Apesar de naquela época ser um pintor bastante conhecido nas galerias do Rio e em espaços culturais,
Aylton Thomaz nunca havia participado de um evento naquele que era um de seus museus preferidos. O artista me confessou que seu sonho era poder expor seus quadros lá algum dia, e que essa primeira vez, mesmo numa coletiva, já valeria como uma grande exposição individual. Para homenagear o maior compositor da MPB,
Aylton Thomaz pintou “O Anjo Tricolor do meu Rio”, onde se via um anjo tocando violão vestindo a camisa do Fluminense enquanto beijava uma mulata. Na cena víamos marinheiros, uma outra bela mulher e a paisagem ornamentada pelo Pão de Açúcar. O anjo, obviamente, tinha as feições do Chico Buarque. A exposição foi inaugurada e a única ausência sentida foi a do próprio Chico, que fugiu de todas as homenagens da época e se exilou em Paris. A exposição foi um sucesso de público e toda a imprensa deu considerável destaque ao evento. No dia seguinte à inauguração,
Aylton Thomaz me ligou e entre muitos comentários me agradeceu por ter realizado seu sonho de poder expor no Museu Nacional de Belas Artes. Ao se despedir, arrematou um “Deus te abençoe!” e desligou. Infelizmente não o vi mais com a frequência que eu gostaria, mas alguns encontros casuais aconteceram ao longo dos anos. A última vez que o vi foi em frente à estação do metrô do Largo da Carioca, próximo à Avenida Rio Branco, onde
Aylton Thomaz mantinha um ponto para vender seus quadros aos turistas. Nesse dia, contou ter descoberto que era diabético e que devido à doença já não enxergava como antes. Disse ainda que gostaria de se dedicar mais à atividade de escritor e que estava cheio de idéias para livros infanto-juvenis.
Nas últimas vezes que passei pelo Largo da Carioca, não o encontrei com seus quadros e cavaletes. Infelizmente, quando o procurei no seu antigo endereço ele não estava mais lá; havia deixado seu estúdio, alugando o apartamento da Joaquim Silva para poder manter em dia os impostos e o condomínio. Fiquei alguns anos sem saber notícias suas, e nem seus colegas do Largo da Carioca sabiam informar sobre o amigo.
Aí, volto à questão da memória infeliz e esclerosada do nosso país. Graças a ela, essa memória desmemoriada,
Aylton Thomaz nos deixou no dia 10 de fevereiro passado em total anonimato, depois de longa internação no hospital Salgado Filho, no Méier. Faleceu em segredo. E não mereceu da nossa imprensa nenhuma nota. Nada saiu nos jornais e revistas. Nenhuma linha virtual na Internet, nenhuma voz nas rádios, nenhuma informação nos noticiários de TV. Absoluto silêncio dos meios de comunicação que
Aylton Thomaz ajudou a construir, os mesmos que lhe dariam páginas inteiras se ele fosse um ex-BBB. Mas
Aylton de Oliveira Thomaz não era uma celebridade. Era apenas e tão somente mais um desenhista brasileiro.