Faz tempo...
Não me lembro exatamente em que
ano aconteceu o fato que passo a contar. Deve ter sido no início dos anos 1980,
quando eu ainda estudava desenho num dos cursos ministrados pelo cartunista
Jorge Guidacci. Eu queria desenhar e só pensava em começar a publicar minhas
caricaturas e cartuns – mas, obviamente, queria ganhar algum dinheiro com isso.
Um outro professor de desenho, o ótimo João Batista, com quem estudei antes de
conhecer o Guidacci, dizia sempre: “Desenhar de graça, jamais! Grátis, meu
filho, só sexo!” As duas referências desses sábios mestres me deram o
embasamento que tenho hoje sobre as questões que envolvem o mercado do desenho
editorial. De certa forma, tornei-me radical quanto a isso e acabei perdendo o
que para muitos poderiam ser as tais oportunidades.
Numa dessas vezes, peguei na rua
um tablóide desses que funcionam como jornal de bairro. Geralmente, são
fraquíssimos em conteúdo editorial, cheios de anúncios e artigos de qualidade
duvidosa, mas como circulam razoavelmente imaginei que poderia ser uma boa
chance para começar a desenhar profissionalmente. Bom, levei o jornalzinho para
casa e liguei para o número que aparecia no expediente. Sem dificuldades,
marquei uma visita ao editor e, já no dia seguinte, fui para lá levando embaixo
do braço um despretensioso portfólio repleto de cartuns e desenhos finalizados
a nanquim. Fui recebido numa pequena sala pelo editor e por sua secretária. O
tal editor, vestindo terno e gravata como um bem-sucedido empresário, passou os
olhos pelos desenhos e decretou que aquele era o meu dia de sorte, já que eles
estavam justamente buscando um desenhista para ilustrar o jornal. Sem demora, o
engravatado encomendou um pouco de tudo que um desenhista pode fazer:
caricaturas, cartuns, ilustrações e até uma tirinha de quadrinhos para a página
direcionada às crianças. Fechou meu portfólio, passou-o de volta para mim e
ficou me olhando como se esperasse um emocionado agradecimento. Como eu não
disse nada que se assemelhasse a um “muito obrigado”, o editor perguntou: “O
que foi, meu amigo? Não quer desenhar pro meu jornal?”. Eu, na minha santa
ingenuidade, fiz a temida indagação que todo espertalhão odeia ouvir: “E quanto
vocês vão me pagar por cada desenho?”. Aí, rolou aquele silêncio constrangedor.
O sujeito, com ares de indignação, arregalou os olhos, afrouxou a gravata rubra
e, salivando pelo canto da boca, perguntou: “Como assim, pagar? Eu, aqui, na
maior boa vontade com um iniciante, estou abrindo um ótimo espaço para a sua
arte e você ainda quer que eu te pague? Rapaz, muita gente quer este espaço
aqui. Sabia?”. Daí eu respondi: “Meu amigo, quem precisa de espaço é
astronauta, o que não é o meu caso. Eu preciso de dinheiro para pagar as minhas
despesas. Desenhistas também pagam passagens de ônibus, também se vestem e
precisam comer.”.
Depois da imediata e ríspida
recusa em desenhar de graça para o sabichão de gravata, levantei-me e dirigi-me
à saída, não sem antes perceber que a secretária tentava disfarçar um risinho
debochado. Então, antes de sair, olhei para a tal e disse discretamente: “Seu
patrão te paga para rir ou você faz isso apenas para conquistar seu espaço?”.
Rapidamente a jovem desmontou o sorrisinho irritante e passou a arrumar papéis
sobre a mesa. Então, fui para casa com a certeza de que perdi minha primeira
grande oportunidade... de fazer fama como otário disfarçado de desenhista.
X – X – X
Em dezembro de 2012 completei 50
anos e ganhei de presente uma caricatura assinada pelo ótimo desenhista Nei
Lima, que atualmente ilustra as páginas do jornal O Dia.
Eis aí, amigo leitor, uma das
boas vantagens em ser amigo de desenhistas talentosos: a gente sempre ganha
presentes criativos e exclusivos.
2 comentários:
ESTE TEXTO TINHA DE SER POSTADO E COMPARTILHADO NO FACE TODOS OS DIAS,ZÉ!MUITO BOM...AS PESSOAS TEM DE ENTENDER,COMO VC DISSE,QUE SE TRATA DE UMA PROFISSÃO E QUE NÓS TAMBÉM NECESSITAMOS DE SOBREVIVER.INFELIZMENTE,MUITOS AINDA SE PRESTAM A ESSE TIPO DE COISA,O QUE DESVALORIZA AINDA MAIS A ARTE...PARABÉNS!ABRAÇÃO...
Além de artista de qualidade é bom de texto Zé! Amei seu artigo. Sou artista plástica por opção e secretária executiva por necessidade, e o que acabei de ler me fez, embora tardiamente, reconhecer que aceitei fazer muitos "trabalhos gratuitos", por amizade e muitas vezes tentando "mostrar" o que eu mais gostava: desenhar. Hoje, sou uma artista "bissexta", sem muito estímulo. Quase nada ganhei com minha arte e ainda ouço a famosa frase: "Como desenha bem, não quer fazer um retrato do meu filho?" De graça, naturalmente!
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